Manhã de sábado, um dos piores dias para se acordar naquele trabalho. O Sr Valdevino Silva, meu avô, trabalhava como segurança em uma pequena escola primária do bairro. Pequena, mas conhecida. Eu mesmo estudei lá na minha infância junto com meus irmãos. Seu serviço era apenas um, dormir, se fosse o caso, observar. A violência no bairro era de grosso calibre e, se a marginalidade quisesse, entraria e levaria tudo. Não queriam, “na favela ninguém rouba”, diz o código. Sua presença era mais para evitar pequenos inconvenientes do tipo, viciados que pulavam o muro para consumir drogas ou usar os banheiros. Para isso ele era muito bom. Não era alto e, apesar de ser um senhor com mais de sessenta anos, tinha uma estrutura que lhe garantia a presença necessária para fazer o oponente pensar. Provavelmente foi musculoso na juventude. Tinha olhos claros que transmitiam uma frieza de arrepiar. Era um tanto ranzinza, inclusive com os netos. Era de poucas palavras com sentenças diretas e aos sábados, acordava de mau humor por causa do baile funk que acontecia próximo a escola. Além dos possíveis problemas, dormia mal por causa do barulho.
Era essa a rotina do trabalho. Chegava próximo das 21:00, ligava uma luz, deixava um rádio ligado e sintonizado numa rádio evangélica. Conferia se todas as portas do local estavam trancadas, deitava-se em uma sala nos fundos e dormia. Ao sinal de qualquer som estranho, acordava para verificar. Admirava isso. Em algumas ocasiões precisei acordá-lo para informá-lo de alguma coisa. Para chamá-lo, bastava bater as correntes no portão de ferro, ele já sabia o código. Se batesse mais de uma vez, vinha furioso, não admitia ser apressado ou que duvidassem da capacidade dele de responder na primeira chamada.
Ele se levantou com o Sol e se preparou para ir para casa. Morava a cerca de dois quilômetros do local. Sua casa ficava próximo aos trilhos do trem de passageiros que divide o bairro. Nesse dia, estava com um carrinho de mão. Não sei exatamente por que, não era seu instrumento de trabalho, mas o importante é que estava com ele. Ele fez o trajeto mais conveniente para quem empurrava um carrinho, beirando a estrada principal que corta o bairro. Não costumava fazer isso, preferia ir por dentro das ruas dos bairros, era mais rápido.
Chegando na altura do seu bairro, entrou em uma rua, não muito grande, 50 metros no máximo. Um ligeiro declive facilitava a progressão do carrinho de mão. No carrinho, tinham roupas, uma pequena planta e um saco de pão, que ele comprou no caminho. A rua estava deserta, ninguém indo trabalhar ou estudar, como era de costume nos dias úteis. Quando já estava próximo do final da rua, onde dobraria a direita, algo quebrou o silêncio: plat, plat, plat, plat... Sons acelerados e cadenciados que conhecia bem. Era alguém correndo de chinelo, vindo por detrás dele. Não se assustou, manteve a postura e continuou andando até que a pessoa passou correndo por ele. Rapaz jovem, magro, mais alto que ele. Corria desesperadamente, não gritava ou pedia ajuda. Ele o observou quando ele o passou, o viu pelas costas, não o reconheceu.
Momentos depois que ele passou, escutou dois tiros: pah! Pah! Tiros certeiros, o rapaz caiu no chão totalmente inerte. Durante a queda, primeiro caiu de joelhos e depois acertou a cabeça no chão. Ficou jogado de bruços, caído em cima dos braços. Vovô parouo, abaixou o carrinho pensando que poderia ter morrido ali mesmo. Bastava o garoto ter o utilizado de escudo ou o atirador atirasse mal. Não ficou chocado, já estava cansado de ver corpos jogados pelo bairro violento onde vivia já a mais de vinte anos. Ele já tinha ideia do que se tratava e aguardava o desfecho do acontecido. Foi quando o homem que atirou foi até ele de arma na mão, e disse:
- Me dá esse carrinho que eu vou jogar esse defunto lá na linha do trem. – Deu ordem ao meu avô. A linha férrea era o local onde jogavam os corpos dos membros da facção rival, que ficava do outro lado da linha. Ninguém passava para o outro lado e vice versa.
Seu Valdevino não pensou duas vezes, respondeu com firmeza:
- Esse carinho é meu e eu não vou dar a você. Cuide de seus próprios assuntos.
Surpreso o homem não sabia o que dizer, ele o olhava direto nos olhos e não via hesitação, não acreditava que ele ignorava completamente a arma e o acontecido. Abaixou os olhos, guardou a arma na cintura da calça. Seu Valdevino virou as costas para o assassino, pegou novamente o carrinho e voltou a seguir seu caminho, empurrando o carrinho, sem medo da morte. Passou pelo corpo caído, evitou a poça de sangue e continuou o seu caminho.
Muito boa crônica/conto! Parabéns! Eu só tentaria, no último parágrafo, incluir um pouco mais de tensão entre os personagens. Talvez uma encarada entre ambos, com uma pausa dramática, uma gota de suor escorrendo pela têmpora do avô, para depois ter o desfecho.
ResponderExcluirObrigado Carlos, vou considerar esse apontamento quando for reescrever.
ExcluirAbs.