Violência doméstica era uma coisa comum nessa época. A frase “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher” era defendida como padrão moral. Não eram meras discussões e troca de empurrões, a maior parte eram cenários de covardia praticados por homens embriagados. Não existia lei “Maria da Penha”, isso é papo de 2006. Era essa a realidade de Lurdes, nossa vizinha. Seu marido, trabalhava como agricultor numa pequena plantação de chuchu no alto do morro. Depois do trabalho, sempre bebia. Tinha muitos filhos, tantos que não conhecia todos. Lurdes muitas vezes buscava amparo na vizinhança para ter algum alimento. Era comum também vê-la indo buscar sobras no CEASA, que é um centro de abastecimento de alimentos. Mulher guerreira, forte de estrutura, pegava peso e caminhava grandes distâncias, só não sabia bater. Não estava totalmente desamparada porque sua mãe morava com ela, esta recebia uma pequena aposentadoria do governo. Ela detestava o genro.
- Quando eu morrer eu vou te levar, para você não ficar aqui maltratando minha filha – dizia ela em muitas ocasiões. Ele não fazia nada com a sogra. Não ousava porque sabia do suporte que ela dava e que isso contribuía para ele continuar bebendo.
Uma vez entrei na casa deles, atraído por uma de suas filhas. A casa era grande mas a realidade não era boa. Padrão antigo, com varandas ao redor dela toda. A porta de entrada era alta e tinha duas partes, com piso de cimento liso e vermelho. Era uma casa do início do século com certeza e por isso, estava acabada. Não tinha quase nada de móveis. Na sala, apenas um sofá de três lugares, rasgado em várias partes, revelando a espuma amarela e farelenta. Ficava no meio da sala, de frente para a porta. Na cozinha tinha apenas o mínimo, fogão e geladeira. Armários somente o embutido embaixo da pia. Nos quartos, via apenas colchões.
Nunca presenciei briga entre o casal, nem de ver nem de escutar. Só via as marcas e escutava os boatos. Lurdes já nem ligava mais para comentários, todos já sabiam e o que lhe restava de dignidade, ela gastava com as amigas vizinhas. Não possuía muita saúde: pressão e diabetes, eram sua principal preocupação, mas com certeza tinha outros problemas. Vivia na emergência do hospital, nosso bairro não tinha posto para esse tipo de assistência na época. Passou mal, tinha que ir para o “Albert”, nome do hospital no outro bairro. Ir para o hospital era outro sofrimento, uma época que ter um carro era sinal de riqueza. Ônibus era a única forma de transporte possível. Tinha que descer o morro, esperar o próximo, pagar e ir parando a cada mil metros, que é a distância entre os pontos.
Num desses dias, a mãe de Lurdes se sentiu mal. Já estava idosa e desenvolvera vários problemas em relação a idade. Lurdes pediu ajuda como dinheiro da passagem para levá-la para o hospital. Minha tia ajudou e depois as levou ao ponto do ônibus. No dia seguinte, me pediram para que eu fosse até a casa deles para ver se ela já havia chegado para ter notícias. Não à encontramos. Fiz isso por três dias e nada. Certamente a mãe ficou internada e ela ficou acompanhando. Depois de três dias, a vimos subindo o morro. Passos arrastados, cabeça baixa, olhos inundados. Parou primeiro em nosso quintal, chamou minha tia e minha mãe, quando elas chegaram, deu a notícia e chorou:
- Minha mãe morreu
Minha tia a acolheu por algumas horas. Estava cansada e com fome. Passara estes três dias no hospital acompanhando a mãe. Se comeu, não imagino como fez. Contou toda a dificuldade da realidade do hospital público e disse que não teve jeito. Somente Lurdes se despediu. Depois de pegar os documentos do óbito, voltou andando, uns dez quilômetros acredito. Agora, estava pensando em como dar a notícia ao seu marido e filhos, e como fazer o enterro. Disse que iria até a igreja para ver se conseguia ajuda para enterrar a mãe. Do marido, não esperava nada, na verdade, esperava pelo menos não apanhar. Acreditava que estaria furioso por ela sumir três dias, sem cuidar de nada.
Lurdes saiu de nosso quintal, subiu a rua e entrou em casa. Minutos depois ouvimos um grito de socorro e choro. Pensaram todos que ele devia a estar espancando, mas dessa vez ela voltou para pedir ajuda, isso nunca aconteceu. Ela estrou em desespero e quando conseguiu fôlego, ela disse:
-Ele também morreu!
Saí correndo para a casa dela. Passei pelo muro sem portão e vi duas de suas filhas na porta. Entramos juntos na sala, e vimos o homem lá sentado no sofá, não parecia morto, os olhos estavam abertos como que olhando para quem estava entrando pela porta aberta. Mão esquerda sobre o joelho e mão direita para fora do encosto do sofá. Entre os dedos, uma guimba de cigarro, as cinzas no chão estavam na sequência, mostrando que não conseguiu terminar o último cigarro. As roupas sujas de trabalho, denunciava que ele tinha ido trabalhar pela manhã e voltou para almoçar, mas ali ficou. Não havia nenhum sinal de anormalidade, violência ou sofrimento. Ele só morreu. Enquanto eu o olhava, lembrei da frase que sua sogra repetia de tempos em tempos:
- Quando eu morrer eu vou te levar, para você não ficar aqui maltratando minha filha.
Muito bom, parabéns!
ResponderExcluirObrigado Carlos, abs.
ExcluirVocê escreve bem. Parabéns!
ExcluirObrigado Rita. Abs.
ExcluirMuito bom! Parabéns.
ExcluirObrigado Leitura e etc. Essa semana sai outro. Abs.
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