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Covardias


Todos os dias, às dezoito horas, começava o Brasil para Cristo, um culto evangélico que era transmitido por dois imensos e velhos megafones que ficavam nas dependências de um asilo do bairro. Era transmitido por um casal de idosos dos quais nunca soube o nome, mas o marido chamávamos de caseiro. Eles moravam no asilo, mas tinham um pequeno cômodo com uma porta que dava para a rua, ali eles vendiam doces e balas e, todos os dias às dezoito, transmitiam o culto que eles faziam em casa.

Uma vez eles nos chamaram para participar, minha mãe e os filhos. Éramos pequenos ainda e pra nós era novidade ouvir a nossa voz no megafone. Cantamos umas canções, lemos a bíblia e tudo durou pouco mais de trinta minutos. O casal adorava crianças. O motivo parece óbvio, não deviam ter muita atenção ali, presos no asilo. Já deviam ter passado de oitenta anos de idade. Andavam e falavam devagar. Quando tinham atenção, contavam todo tipo de história.

O asilo ficava ao lado de um terreno que, com o tempo, foi usado para um sacolão, esse era o nome dos Hortifruti da época. O sacolão era imenso, gerenciado por um homem forte, estatura mediana e marrento, que era dono do estabelecimento. Reclamava de tudo, ali o cliente não tinha razão de nada, achava que fazia um favor para as pessoas.  Com o tempo, ele começou a deixar claro a insatisfação com a transmissão do programa do Sr Caseiro. Um dos megafones, apontava para o lado do sacolão. Sentiu-se no direito de pedir para tirar de lá. O seu Caseiro combinou com alguém que virou o megafone para o lado da rua, direcionando o som para outro lado. Não surtiu muito efeito, ele queria mesmo é encerrar a atividade.

- Todo dia é isso, eu não sou obrigado a seguir essa religião – dizia ele pra todos ouvirem.

O casal ficava constrangido com os escândalos, mas mantinham a atividade. Aqueles poucos minutos eram os últimos lampejos de liberdade e autonomia que os idosos tinham, e por estar relacionados à fé, consideravam sagrados. De fato, acredito que eles prestavam um mínimo de serviços social para aquele pedaço da comunidade, onde o tráfico de drogas era intenso. Palavras de arrependimento, consolo e paz, eram sempre bem-vindas para quem estava perdido nas drogas ou optou pela marginalidade, mas não era o que pensava o dono do sacolão.

Um dia, logo depois do início da transmissão, ele foi reclamar e exigiu que parasse. Como o idoso não falava nada ele resolveu entrar na loja e desmontar o equipamento que ele usava:  um amplificador, uma vitrola e um microfone. O idoso entrou em desespero e tentou impedi-lo. O homem, já nervoso, o empurrou e deu-lhe um murro no queixo. O idoso caiu desacordado. Sua esposa  ficou em choque encolhida no canto. Não tendo mais impedimento, o homem desligou o microfone, recolheu o amplificador e retornou ao sacolão. Pessoas que passavam em frente a loja, entraram para ajudar e acionaram a direção do asilo, que ficava a poucos metros. Colocaram o casal num carro e levaram para um hospital.

O sacolão fechava às vinte horas. Entre as dezoito e as vinte horas, muitas pessoas chegando do trabalho paravam pra fazer as compras depois de descer do ônibus, vindo do trabalho, e o sacolão ficava em frente ao ponto de ônibus. Neste horário sempre havia uma clientela significativa no estabelecimento. Pouco depois das dezenove horas, quase uma hora depois do acontecido, chegaram no sacolão uma dúzia de homens, todos armados com todo tipo de calibre. Chegaram gritando para que todos saíssem, mas o dono do sacolão seguraram. Todos saíram do estabelecimento e do pequeno pátio em frente. Os mais audazes atravessaram a rua e ficaram observando. Com o tumulto, o trânsito na estrada parou nos dois sentidos. Trouxeram o dono para o pátio e perguntaram:

- Por que você bateu no idoso? – não ouviram resposta e também não argumentaram mais nada. Estava estampado no rosto dele a culpa e não conseguiu sequer negra. Um deles o amarrou de pé em uma bancada onde havia legumes. Utilizou pedaços de fio que arrancara do próprio estabelecimento. Depois retornou para os demais que estavam enfileirados, um ao lado do outro. Um deles deu o primeiro tiro e todos os outros começaram. Cada um deles descarregou a arma no homem. Não economizaram munição. Em poucos minutos, uma larga poça de sangue se formou ao redor de um corpo mutilado, desfigurado, amarrado de pé na bancada.

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